A vida é bela?

Eric Cunha
4 min readDec 8, 2023

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A Vida é Bela, do Roberto Benigni, é um filme em que o grande contraste com o horror e o horrível, deveria calar o discurso da beleza. Foi arriscado. O Vitor Hugo diz que o sublime sob sublime não agrada. Até o belo cansa. Por isso que, segundo ele, o contraste com o grotesco faz ressair o sublime. Uma coisa é certa: a beleza está cercada de “feiura”.

Num discurso excepcional o cardeal Ratzinger se pergunta:

O belo pode ser genuíno ou, no final das contas, é apenas uma ilusão? A realidade talvez não seja basicamente má? O medo de que no final não seja a flecha do belo que nos conduza à verdade, mas que a falsidade, tudo o que é feio e vulgar, possa constituir a verdadeira “realidade”, sempre causou angústia nas pessoas. Atualmente isto foi expresso na afirmação de que depois de Auschwitz já não era possível escrever poesia; depois de Auschwitz já não é possível falar de um Deus bom. As pessoas se perguntavam: onde estava Deus quando as câmaras de gás funcionavam? Esta objeção, que parecia bastante razoável antes de Auschwitz, quando se percebiam todas as atrocidades da história, mostra que, em qualquer caso, um conceito puramente harmonioso de beleza não é suficiente.

O filme é uma resposta. Com humor e arte, não depois, mas de dentro da experiência do campo de extermínio. Ele não forçou. Ele deu um roteiro. Pesquisas posteriores com os sobreviventes dos campos confirmam que não apenas havia humor entre eles como ele representava a própria sobrevivência (Como em The Gates of the Forest de Elie Wiesel).

O riso aparentemente desesperado e impotente, era um fio de vida que se afirmava. Rimos porque a vida é mais. Porque a vida teima, resta, como uma força que não se dobra. A beleza veste a insistência.

Mas qual beleza? Já sabemos qual não seja.

Ratzinger pensa nela através de um paradoxo da fé cristológica formulada em duas confissões sobre o mesmo Cristo: “Tu és o mais belo dos filhos dos homens”, e: “Ele não tinha beleza, nenhuma majestade para atrair nossos olhos, nenhuma graça para nos fazer deleitar nele.”

Ele escreve:

Na Paixão de Cristo, a estética grega que merece admiração pelo seu contato percebido com o Divino, mas que para ela permaneceu inexprimível, na paixão de Cristo não é removida, mas superada. A experiência do belo recebeu nova profundidade e novo realismo. Aquele que é a própria Beleza deixou-se levar tapas na cara, cuspir, coroar de espinhos; o Sudário de Turim pode ajudar-nos a imaginar isto de forma realista. Mas no seu Rosto tão desfigurado aparece a beleza genuína, extrema: a beleza do amor que vai “até ao fim”; por isso se revela maior que a falsidade e a violência.

O psicólogo Viktor Frankl, ele próprio ex-prisioneiro dos campos, confirma que o humor era um ingrediente de sobrevivência. Os sobreviventes viviam a realidade liturgicamente: isto é, eles brincavam com a realidade. E isso também era um eco do sim ao belo, como recusa em aceitar a realidade como “feia”. Não uma seca negação ou covarde alienação, mas um querer a realidade um tanto mais. Viver, diziam, era a maior forma de vingança. Viver bem era a única coisa possível.

O vislumbre do que é belo é o que nos fornece recursos para criar fantasias. Todo nervo humano é uma mediação fantasiosa. O que mais humano que isso?

“Na vida real” — escreve Philip Yancey, “uma mãe surpreendida numa zona de guerra carrega seu filhinho recém-nascido, aperta-o fundo contra o peito, afaga sua cabeça e cochicha, sem qualquer lógica: “Vai dar tudo certo”, mesmo quando as explosões estridentes ficam cada vez mais próximas”.

A Vida é Bela nos conta que riu-se em Auschwitz. Um riso trágico. Uma reescritura da tragédia: por pequenos instantes, engolida pela comédia. O personagem do Benigni não se deixa esmagar. O humor é rebelde. Protesta os limites. Rir é mesmo “resistir à internalização dos valores do opressor, incluindo a desumanização dos oprimidos”.

Olhamos na cara de um absurdo imenso: e ainda afirmamos a vida. Flora Keshgegian escreve como foi surpreendida pela profunda fome de vida que encontrou entre os muitos sobreviventes que entrevistou.

Rir no absurdo. Rir do absurdo. Isto é, tornar tudo isso um absurdo maior ainda.

A comédia do A vida é bela é, não sem propósito, tola. O desavisado poderia achá-la pueril, superficial. O que o Benigni faz é tomar mão de uma figura do folclore judaico, o Schlomo. Ele encarna muitos “tipos”: o ingênuo, idiota ou louco, que porta uma verdade e uma capacidade de dizê-la. Ele usa essa figura mole contra a realidade petrificada.

Voltemos à nossa questão. O Peter Berger fala sobre a promessa de redenção contida no riso. Eu vejo nisso uma beleza que se insinua.

O absurdo deste Mundo só tem justificativa num absurdo maior de sua redenção total, universal, absoluta. E só isso é graça.

As cicatrizes contam uma história de um amor que foi até o fim. Porque, sim, Ele é o fim.

O Apocalipse, de verdade, será de beleza.

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