ADORÁVEL IMPASSIBILIDADE

Eric Cunha
9 min readMay 7, 2024

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O apego da teologia e espiritualidade cristã dos primeiros séculos às palavras impassibilidade / apatheia não foi apressado, infrutífero ou injustificado. Não foi uma mera herança “pagã”, racionalista, recepcionada sem uma reflexão apropriada ou insuficientemente cristã. Nem está simplesmente atrelada a uma metafísica obsoleta. Pelo contrário, há uma razão cristã por trás dessa escolha e talvez seja proveitoso revisitá-la. Dito isso, esclareço que não estamos tão interessados no uso pré-cristão da palavra quanto estamos interessados em ouvi-la em seu significado próprio adquirido enquanto integrante da gramática de muitos dos Pais da Igreja. Tomar um significado por outro, tem gerado um anuviamento daquela perspectiva cristã e oposições infundadas.

Ainda assim, entendo que há um confronto melhor informado e legítimo com a impassibilidade1. Insta informarmo-nos nas duas direções. Há sentido cristão na impassibilidade. Assim como há sentido cristão na fala sobre o sofrimento de Deus. Os sentidos tensionam. Essa tensão sinaliza saúde. Talvez seja a necessidade de “racionalizar”, sintetizar e alinhar que seja consequência de uma opção metafísica mal pensada. A Igreja antiga, especialmente a oriental, era amiga das antinomias. Os grandes mistérios eram labirínticos à razão e linguagem humana. Falar sobre Deus era uma ousadia que restava após uma humilhação apofática — uma experiência não conceitual da grandeza do mistério do amor divino.

As oposições ruins à impassibilidade acusam àqueles Pais de não entenderam o que sempre foi o suposto: as implicações da Paixão, da Encarnação, da kenosis. Partem de uma oposição simples entre impassibilidade e Paixão. E concluem que a impassibilidade como relacionada à um céu indiferente, intocado — o retrato de uma conversão fracassada do “Deus imóvel” de Aristóteles.

Moltmann faz perguntas que nos posicionam melhor:

Por que a teologia da igreja antiga manteve o axioma de impassibilidade quando a piedade cristã adorava o Crucificado como Deus e a mensagem evangélica falavam da “paixão de Deus”? Como Deus está envolvido na história da paixão de Cristo? Como é possível que a fé cristã considere a paixão de Cristo como uma revelação de Deus se a divindade não pode sofrer? Deus faz Cristo sofrer por nós ou o próprio Deus sofre em Cristo por nós?”

Esse conteúdo evangélico evidenciava e ampliava o problema, mas também inspirou uma resposta cristã. É dizer, a impassibilidade grega se distanciava abismalmente da impassibilidade sustentada pela reflexão cristã. Está só era impassível apenas à medida da inconteste Paixão, portanto, exigindo o “sacrifício” lógico-racional ou, pelo menos, seu desgaste. Na recepção cristã, a impassibilidade era uma nova forma de falar da Paixão. Como toda linguagem sobre é Deus isso mesmo, linguagem, portanto analógica — como dizem os teólogos, a impassibilidade acentuava a diferença qualitativa da paixão divina.

Assim, os Pais forjaram um sentido próprio da impassibilidade, não por ignorar, mas olhando para o mistério da fé. E souberam reconhecer e colocar o mistério dentro do abismo trinitário da revelação. Isto é, sem pretender desfazer as tensões, mas admitindo-as, esticando-as e perpetuando-as.

É preciso dizer que, até aqui, todos os meus textos2 falam da perspectiva de um Deus sofrente. Não entendo que preciso recuar no que essencialmente foi dito, principalmente se com este novo complemento, a tensão se torne mais perceptível. Mas foi com alguma imersão na fé patrística que percebi que a antinomia não precisa ser desarmada, e que talvez seja a melhor forma de contemplar o mistério e mantê-lo como tal. Aliás, descobri que fé patrística não pode ser um polo de oposição — nem em sua opção pela apatheia. E isso ficará mais claro à medida que estaremos expondo um pouco a perspectiva patrística.

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Cirilo de Alexandria talvez tenha sido quem encabeçou o debate mais comprometido e dedicado. Ele protagonizou um debate cristológico muito importante com Nestório, que arguia que a divindade não se torna, não nasce, não chora, não sofre, não morre. Nestório atribuía uma separação entre as naturezas: o lado humano de Cristo é quem nasce e padece, a Sua divindade permanecia intocada. Cirilo se colocou apaixonadamente contrário a essa separação do Logos da sua humanidade. Para ele o Logos assume a humanidade. Portanto, se Cristo chora e sofre, Deus chora e sofre. E dizer isso era uma forma de reconhecer a divindade de Jesus. Pois quem chora é o Deus “feito carne”. Esse entendimento sobre a Trindade permite que seja mantida a distância entre a Trindade econômica e Trindade imanente — que se perde na maioria da teologias que opta pela passionalidade divina.

A fórmula antinômica de Cirilo resumia seu pensamento: Deus “sofre impassivelmente3.

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Moltmann em sua dedicada revisão da doutrina clássica da impassibilidade se esforça para não falsificar o debate com simplificações. Ele se vê obrigado a admitir: “A impassibilidade é, sem dúvida, um atributo inalienável da perfeição e bem-aventurança divina”. O que então propõe? Novas formas de pensá-la. O que se coloca em questão é a interpretação. Por isso ele propõe qualificações. Fala em de uma “passibilidade” divina que não signifique “sujeição fatal ao sofrimento”. Ou de um “padecer ativo”. Formas de dizer que Deus não está sujeito ao sofrimento “ao modo da criatura contingente”. A criatura, explica, sofre por “carência de ser”. Por isso ele diz: “neste sentido sim, Deus é impassível”. O “padecimento” divino se dá, pelo contrário, “por efeito de seu amor4.

Mas a própria percepção central de Moltmann precisa ser desafiada. Ele dizia: um Deus absolutamente impassível seria incapaz de amar. Observe que a própria condição, o “absolutamente”, precisa ser problematizada. A impassibilidade era justamente uma forma de falar sobre a diferença qualitativa infinita do amor de Deus. Mais propriamente: sobre Deus como o fundamento de todo e qualquer amor. É o que veremos.

Amor Impassível: não se pode imaginar maior

O que então os padres queriam dizer com “impassível”?

Impassível era um “atributo” do amor de Deus5. Deus é impassível porque Deus é amor. A ideia que se pregava é que o amor de Deus não é primordialmente uma reação6. Ele é suficiente em si mesmo. Ele não depende de resposta, ele cria a resposta. Ele não tem métricas fora de si. Ele não aumenta ou diminui. Ele não acaba. Ele é eterno. Ele foi a resolução divina de criar, como é de manter e salvar. Ele é pleno, não tem falta. Ele é ativo e criativo. Ele não é “iniciado” ou provocado. Ele é antes de tudo, ele não é apenas o primeiro passo, mas chão de chão. Ele é o caminho, ele é o movimento. Como ele é vital e criativo, se identifica como o nosso existir. Ele está ativo em nós. Não podemos ser separados dele. Deus nunca deixará de amar. Tudo o que Deus faz, o faz como Deus de amor. Deus é impassível enquanto impermeável a tudo que seja contrário a esse amor: “um amor como este é a única verdadeira impassibilidade”(Hart).

A impassibilidade foi uma “ciência” do amor inesgotável de Deus.

Um “deus” de menos amor, de amor não pleno, não eterno, não inesgotável, é um “deus” menor, portanto, não é Deus. É uma criatura, por maio que seja.

A apatheia divina é, desde Dionísio, o eros divino, não imóvel, mas atuante, não desinteressado, mas implicado. Mas não à maneira do “teísmo”, onde Deus é como criatura (imensa, suprema), pensado nos termos da criatura. Ele cria o mundo em si, como partilha de si. Existimos nele. Falar sobre uma toda-implicação de Deus ainda é menos. Falar sobre “atividade” de Deus ainda é menos, ainda é falar dele ‘como uma mitologia’. A apatheia divina é um amor incessante. Isso, como nos lembra Hart, era inimaginável à filosofia antiga. Deus é imutável porque Ele é perfeito amor. Ele não será. Ele é. “Longe de ser mero desapego estóico, então, apatheia é na verdade uma condição de apego radical”(Hart). Apego radical: amor criador e paterno. Como dito na Filocalia: “Não diga que o impassível não pode ser afligido. Pois se ele não é afligido por si mesmo, será pelo seu próximo.”

Deus tem prazer pleno em si e é o que partilha. Criar é partilhar-se. Criar é doar-se. Criar é criar em si. Portanto, a glória de Deus é receptividade, hospitalidade, vicariedade. A apatheia divina quer dizer que Ele é o Autor da vida.

Por tudo isso, se pode dizer que a impassibilidade divina era a própria chave do evangelho enquanto promessa de alegria plena em Deus.

Amor Solar

A outra ponta da analogia é a condição humana. A apatheia entra na gramática da espiritualidade cristã não apenas como um atributo divino, mas também como uma virtude a ser perseguida, uma “imitação” de Deus, uma “perfeição” a ser atingida pelos santos no amor divino, isto é, a perfeição da caridade — amar como Deus ama.

Aqui, a “ciência” do amor exibe mais claramente sua sabedoria, sua psicologia da alma humana, sua visão espiritual. O amor “patético” é retributivo, ou ocioso, carente, vacilante. O amor humano é contaminado pelo pecado: é o amor-que-resta da alma orgulhosa, egoísta, ambiciosa, narcisista, auto-referente, etc. Amor “impuro”, que convive com as limitações e distorções do pecado.

A apatheia é o alvo do coração puro, coração imperturbável: portanto, capaz de amar. Um amor sem restrições, um amor tão perfeito que nenhuma perturbação ou pathos pode evitar sua intensidade, diz Evágrio Pôntico. Ele ainda descreve esse amor como somente “possível para uma mente purgada de todo o ódio pelos outros”.

A apatheia não é ausência de paixões, nem oposição a elas. Mas a sua purificação.

Os padres ensinam que a “impassibilidade” afina os sentimentos. Ela torna os pensamentos “mais delicados e mais atentos”.

Máximo o Confessor, fala da apatheia como uma forma de repelir as “paixões destrutivas”. Mas não é negando-as, nem lutando contra elas. Mas “abrindo-nos a uma plenitude de vida, de alegria, de conhecimento que afasta suas limitações e assume seu dinamismo”. Uma condição nova de paixão. Cuja potência e energia são “inteiramente voltada para Deus”.

Efetivamente, nada existe” — diz Máximo, “cólera ou desregramento dos sentidos — que não participe do Bem. No homem que tem o espírito inteiramente voltado para Deus, até a cobiça dá forças ao amor ardente por Deus…”.

A apatheia, também aqui, é uma forma mais elevada de paixão. Diz Paul Evdokimov: “Ascetas tão severos quanto Isaac, o Sírio, ou São João Clímaco diziam que é preciso amar a Deus como se ama a noiva.”

Isso é outro nome para liberdade. A apatheia é um qualificativo da liberdade, como liberdade para amar.

A apatheia é liberdade para com o mundo (Máximo o Confessor), isto é, de não lhe corresponder. Estar fora para oferece-lhe o que ele não tem. Num movimento de distanciamento e dedicação, onde a ágape é determinante, o todo positivo dos atos da fé: o afastar-se do mundo é devotar-lhe, o não ser do mundo é amar-lhe.

Essa “liberdade interior”, diz Evágrio Pôntico, é a “capacidade de conhecer e de amar com toda nossa força de paixão transfigurada pelo “amor louco” de Deus pelo homem”.

A apatheia humana é também participação no amor impassível de Deus. Ser parte desse amor em direção a tudo. É assim que os pais falam que alcançar apatheia é se abrir “ao infinito sobre os seres e as coisas.” A impassibilidade, diz Máximo o Confessor, “une o homem e a obra ao amor divino pela criação”. Ela nos leva a olhar com novos olhos para os seres criados.

Apatheia é paixão infinita. Na belíssima expressão dos pais, “O amor do impassível é um amor solar”, pois “brilha sobre os bons assim como sobre os maus, sobre os justos como sobre os injustos; ele é um amor que não apenas imita o amor de Deus e de Cristo para com os homens e tudo aquilo que vive e respira, mas participa”.

Evrágio deixou versos que penso que melhor resume a formação do conteúdo cristão apatheia:

“Ele está separado de tudo e unido a tudo;

impassível e com sensibilidade soberana

Acima de tudo, ele é feliz,

divinamente feliz.”

Deus como impassível é a maior garantia de que Ele pode (e vai) nos levar à alegria. Ele é o soberano da alegria. Seu amor criador é antes que sejamos, a própria existência e a promessa de plenitude. Seu amor não pode deixar de ser. Qualquer métrica da participação de Deus nos nossos tropeços e sofrimentos é dizer infinitamente menos. A Paixão tem um apelo irrenunciável da solidariedade de Deus, mas porque o Crucificado é Ressuscitado que temos a certeza de que o Amor vence.

1 As melhores discussões contra a impassibilidade estão em Heschel (especialmente Os profeta) e Moltmann (Deus crucificado, Trindade e Reino de Deus, Paixão pela vida, etc). Também Barth e Eberhard Jüngel, Kitamori. É preciso citar ainda obras da literatura pós Auschwitz: Hans Jonas, Primo Levi, Elie Wiesel, Emil Fackenheim, e outros.

2 Alguns deles: https://eric-cunha.blogspot.com/2020/04/teodiceia-da-fraqueza.html e https://eric-cunha.blogspot.com/2020/04/teodiceia-da-fraqueza-parte-ii.html

3 Algo assim já havia sido dito por outros, como, por exemplo, por São Melito de Sardes e Irineu.

4 Uma qualificação, aliás, não muito diferente da proposta dos próprios defensores clássicos da impassibilidade, como Anselmo.

5 A relação com o amor vai ficar ainda mais claro abaixo. Diz a Filocalia: “nenhuma outra virtude que não o amor pode conferir a impassibilidade à alma”.

6 Muito do que se expõe aqui foi retirado do texto “NO SHADOW OF TURNING: On Divine Impassibility” do David Bentley Hart.

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