Náusea Divina e Divina Náusea — o repugnante em Kafka e o repugnante sermão de Jonathan Edwards

Eric Cunha
8 min readSep 6, 2024

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Em seu reconhecidamente notável início, a novela DIE VERWANDLUNG (“A Metamorfose”) de Franz Kafka, lemos:

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”

Pode-se dizer que este pequeno recorte contém a marca do que, mais tarde, reproduziria o corpo e a alma do que viria significar o vocábulo “kafkiano”: angustiante em toda sua extensão semântica. Em A Metamorfose, o mundo do Gregor Samsa encolhe, é espremido — quando espacialmente tenha se tornado muito mais amplo. Sentimos que as paredes do seu quarto o encurralam. Sua incapacidade de se comunicar nos transmite um aprisionamento: um mundo que mal o comporta.

A atmosfera é horrorosa porque é normal. O absurdo apenas se constata. Nem Gregor Samsa, nem sua família, se perguntam sobre o porquê ou como essa metamorfose foi possível. O narrador não sabe, não quer saber. O “kafkiano” não é o fabuloso, contudo. Nem é exatamente uma distorção surrealista. O onírico ou a atmosfera de pesadelo é que ele esteja acordado. É um fabuloso realista.

As famosas inversões kafkianas não nos enganam com alguma esperança própria das fábulas, ou alguma saída realista de uma cena surrealista — como a de quem acorda. Se Kafka deseja afirmar que o “natural” e o “não-espantoso” de nosso mundo é pavoroso, diz Gunther Anders, então ele faz uma inversão: o pavor não é espantoso. O que se mostra é que o horror “normalizado” é tão horroroso quanto deveria horrorizar e não horroriza. Poderíamos sugerir que a técnica do filme Zona de Interesse é kafkiana.

Diferente dos surrealistas, Kafka é calmo. Gregor Samsa permanece gentil enquanto é desprezado. Ele acorda metamorfoseado e sua preocupação é que tenha se atrasado ao trabalho. Nos arrastamos enquanto ele demora-se tentando a impossível tarefa de seguir sua rotina.

O grotesco é trivial.

O “inseto”1 (Ungeziefer) monstruoso (ungeheuer) é a tradução assentada do Carone, tradutor canonizado de Kafka no Brasil. Mas ele próprio diz que essa tradução perde alguns dos ingredientes básicos do original. Escreve:

Essa tradução é horizontal e ‘correta’, mas perde alguns dos ingredientes básicos do original — como a reiteração de três negações pelo prefixo alemão un (unruhig, ungeheuer, Ungeziefer) […]. Para o que agora nos interessa, o adjetivo ungeheuer (que significa monstruoso e como substantivo — das Ungeheuer — significa ‘monstro’) quer dizer, etimologicamente, ‘aquilo que não é mais familiar, aquilo que está fora da família, infamiliaris’, e se opõe a geheuer, isto é, aquilo que é manso, amistoso, conhecido, familiar. Por sua vez, o substantivo Ungeziefer (inseto), ao qual ungeheuer se liga, tem o sentido original pagão de ‘animal inadequado ou que não se presta ao sacrifício’, mas o conceito foi se estreitando e passou a designar animais nocivos, principalmente insetos, em oposição a animais domésticos como cabras, carneiros, etc. (Geziefer)2.”

Explica a Raquel Abi-Sâmara:

A nuance sensória da repugnância e do nojo contida em “Ungeziefer” acaba por ser omitida (ou fortemente minimizada) quando a palavra é traduzida por “inseto”. Por ser esta uma palavra que define uma classe específica de invertebrados, ressoa semanticamente como um termo mais científico do que sensorial. Vale lembrar que existe a palavra “Insekt” em alemão, que é perfeitamente correspondente a “inseto”, mas que não foi usada nem uma vez por Kafka em Die Verwandlung”.

Em seu uso atual a palavra Ungeziefer significa um pequeno e indesejável animal que pode despertar nojo e repugnância.

Kafka não quis definir, e parece já claro que ele não quisesse descrevê-lo como um “inseto”.

Gregor Samsa se transformou em um “ungeheueren Ungeziefer” — de toda sorte, uma criatura repugnante e espantosa. A sua forma asquerosa era certa e isso se beneficiava da sua indefinição.

O próprio Kafka se refere a sua história como uma “história repulsiva”. E mostrou-se temerário quanto às tentativas de que se fizesse um desenho.

No talento de Kafka o horror é discreto. Gregor Samsa entende que não deveria ser visto, ele se esconde, permanece no quarto a maior parte da história. Com a exceção da irmã, ninguém entra no seu quarto. O abjeto não é visto, mas é sentido. Sabe-se que ele “está lá”.

Em duas cenas em que se mostra, o que se destaca é uma indignante repugnância, um horror e nojo que até precisa ser punido.

Essa é a cena em que é visto por sua mãe:

“… antes que realmente chegasse à sua consciência que o que ela via era Gregor, exclamou com voz esganiçada e áspera:

— Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!

Como se desistisse de tudo, ele caiu de braços abertos sobre o canapé e não se moveu.”

O pai o agride. E não o mata porque “o mandamento do dever familiar impunha engolir a repugnância e suportar, suportar e nada mais.”

Em uma segunda cena, quando pela primeira vez quis participar da vida familiar — ao sair para ver sua irmã tocando um instrumento, é visto pelos hóspedes, cuja reação não deixa dúvida sobre como sua repugnância era inaceitável e intolerável:

“ — Declaro por este meio — disse ele, erguendo a mão e procurando também a mãe e a irmã com o olhar — que eu, levando em conta as condições repulsivas reinantes nesta casa e nesta família — aqui ele cuspiu no chão, rápido e decidido — , rescindo neste momento a locação do meu quarto.”

As repetidas vezes em que a irmã, o elo mais afetivo, diz “suporte-o” (por exemplo, “Procuramos fazer o que é humanamente possível para … suportá-lo”), criam uma linha visível de degaste, uma metamorfose da família. Ela completa no final: “não é possível suportar em casa mais esse eterno tormento. Eu não aguento mais.” “Precisamos tentar nos livrar disso…”. E todos concordam. O inseto realmente empacota e é “varrido”. Não há luto. Há um alívio e um raro passeio familiar, como forma de compensação, onde Gregor nem é mencionado.

Essa história repugnante faz lembrar a um famoso sermão, também repugnante, pregado por um pregador americano — onde o tom é de horror e o asco, o nojo e a repugnância recebe certo destaque.

Seria anacrônico dizer que Jonathan Edwards, em seu sermão Pecadores nas mãos de um Deus irado de 1741, foi kafkiano? Certamente Edwards explorou a fortuna das emoções hostis: o nojo, a humilhação, o desprezo, a abjeção.

Seria um enorme prejuízo do saldo negativo resumir assim o conteúdo desse sermão: “Deus tem nojo de você! Deus o esmagará como a uma barata!”

Edwards se utiliza do que pode, como arsenal de metáforas-realistas, para expressar a capacidade infinita de Deus de odiar o homem: a força de um rei poderoso e cruel, capaz de infligir dor, é apenas uma imagem limitada de um poder de causar dor infinita:

“O súdito que muito enfurece um arbitrário príncipe, está sujeito a sofrer os mais extremos tormentos que a arte humana é capaz de inventa, ou que o poder humano é capaz de infligir. (…) (Mas) É muito pouco o que podem fazer … A ira do grande Rei é muito mais terrível que a deles.”

A analogia, com a reserva do infinito a mais (Se o homem, Deus infinitamente mais) é extraída do que há de pior do comportamento e da experiência humana: dos sádicos, psicopatas e da arte da tortura. O que não é raro na teologia cristã, especialmente na tradição calvinista. Diante da questão do genocídio total de um povo, incluindo crianças, sem negar a historicidade — mas assumindo-a, Tremper Longman III diz que

não devemos ficar espantados. “Ao contrário”, diz. “Em certo sentido, a destruição dos cananeus é uma prévia do juízo final.” Esse genocídio é a imagem limitada do que Deus fará universalmente!

Em outras imagens, para Edwards, a ira de Deus represava, e seria, a qualquer momento, um tsunami ou um Brumadinho arrasando insaciavelmente pessoas.

Edwards, no seu momento mais “kafkiano”, utiliza-se também da abjeção e nojo:

“O Deus que te segura acima do abismo do inferno, assim como alguém que segura uma aranha, ou algum inseto repugnante sobre o fogo, tem repulsa de ti, e está sendo terrivelmente provocado: sua ira contra você queima como fogo, ele olha para você merecedor de nada mais que ser lançado no fogo…”

“Ele tem olhos puros demais para suportar ter você em sua visão; você é dez mil vezes mais abominável aos olhos Dele que a mais detestável serpente venenosa é aos seus.”

É claro que, aqui, não estamos diante do horror discreto e inteligente de Kafka, mas de um espetáculo nada fabuloso. A abjeção que carregam os signos da aranha e da serpente não metamorfoseia o homem, expressam apenas o ódio de Deus, seu desprezo. Portanto, um ódio de um Deus que odeia, um Deus que, muito distante de um apotegma verdadeiramente encarnacional — “nada do que é humano me estranha”, antes, o humano, causa repugnância no Deus do Edwards — que nem se coloca a questão de que Ele como Criador poderia não tê-lo criado. Porque é preciso que exista. Exista para que a “justiça” o triture. A “justiça” é uma ira louca que promove um espetáculo que daria inveja aos espetáculo de sangue e morte dos romanos:

o Senhor simplesmente irá esmagá-los sob Seus pés. E apesar de saber que, ao pisoteá-los, vocês não poderão suportar o peso de Sua onipotência, ainda assim Ele não vai Se importar, e irá esmagá-los debaixo de Seus pés, sem piedade, espremendo o seu sangue e fazendo com que o mesmo espirre longe, manchando Suas vestes, maculando Seu traje. Ele não só irá odiá-los, como devotará a vocês o maior desprezo. Lugar algum será considerado próprio para vocês, a não ser debaixo de Seus pés, para serem pisados como a lama das ruas.”

São mantidos humanos porque isso é o que sustenta a lógica da tortura:

“… esse resto de humanidade é fundamental para que a humilhação seja possível: os torturadores “sabem que as pessoas que torturam são seres humanos e é por isso que os torturam, na esperança de revelá-los como não sendo aquilo que sabem que são. Não há emoção em fazer um rato agir como um rato. A emoção está em tornar um humano um rato” (William Ian Miller )3.

Esse quadro comparativo entre as repugnâncias em Kafka e Edwards permite expor a inversão: o horror em Kafka é que o horror não horrorize. Se Edwards quis horrorizar (e descreve-se que as pessoas que o ouviam tinham angustiosas experiências infernais), ele também normaliza o horror, a tortura, o desprezo, atribuindo ao máximo do espelho ético humano — a Deus. O sermão sobre a náusea divina é ele, o nauseante. O homem sadio deve se repugnar ante essa terrível imagem divina.

Em uma segunda oportunidade, vamos refletir sobre como o abjeto representa uma crise de identidade e as implicações teológicas dessa imagem de um divino em crise com sua criatura.

Eric Brito Cunha

NOTAS

1 A Raquel Abi-Sâmara propõe a tradução “MONSTRUOSO BICHO REPUGNANTE”. Ela conta das dificuldades de sua proposta perante traduções que se tornaram clássicas. Os argumentos dela serão resumidas aqui. Consulte em O (IN)EVITÁVEL “MONSTRUOSO BICHO REPUGNANTE” (UNGEHEUERES UNGEZIEFER) NA RETRADUÇÃO DE DIE VERWANDLUNG.

2 Em Lições de Kafka.

3 Citado em Nojo, humilhação e desprezo: Uma antropologia das emoções hostis e da hierarquia social María Elvira Díaz-Benítez, Kaciano Gadelha e Everton Rangel.

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